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A extensão dos efeitos do Despacho Decisório nº 53/2024/GABIN sobre os órgãos estaduais e municipais de meio ambiente

Uma discussão sobre a extensão da tutela jurídica do bioma Mata Atlântica no licenciamento ambiental de empreendimentos minerários

O Despacho Decisório nº 53/2024/GABIN, recentemente proferido pelo Presidente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama), reavivou as discussões acerca da tutela jurídica da Mata Atlântica. O referido ato estabelece o entendimento da Autarquia Federal de que, com fulcro no art. 32, c/c art. 14, § 1º, da Lei Federal nº 11.428/2006, para a viabilização de empreendimentos minerários que dependam da supressão de vegetação inserida no referido bioma, além do licenciamento ambiental, condicionado à apresentação de Estudo Prévio de Impacto Ambiental (EIA) e de Relatório de Impacto Ambiental (RIMA), e da adoção de medida compensatória, também seria necessária a obtenção de anuência prévia do órgão federal de meio ambiente.

Em suma, o racional utilizado para a fundamentação do despacho em questão endossou a linha argumentativa já defendida pela Superintendência do Ibama no estado de Minas Gerais (Supes-MG) e pela Diretoria de Uso Sustentável da Biodiversidade e Florestas (DBFlo) – em contraponto ao entendimento sustentado pela Procuradoria Federal Especializada junto ao Ibama (PFE/Ibama) e pela Diretoria de Licenciamento Ambiental (Dilic) – de que, supostamente, a dispensa da anuência do órgão ambiental federal em questão traria prejuízos à devida proteção do bioma.

Sem adentrar nas análises do mérito[1] do despacho decisório em comento e colocando de lado as discussões acerca da efetividade do arcabouço normativo em vigor para a devida tutela da Mata Atlântica, o presente trabalho se dedicará à verificação da extensão dos efeitos do referido ato administrativo, por meio da investigação de sua natureza jurídica, para, então, lançar como questionamento central a possibilidade da repercussão de seus efeitos para os demais órgãos da Administração Pública que compõem o Sistema Nacional do Meio Ambiente (Sisnama), em especial aqueles para os quais foi outorgada a atribuição para o licenciamento ambiental.

Para tanto, de modo preliminar, torna-se necessário esclarecer que os despachos decisórios podem ser compreendidos, em consonância aos ensinamentos de Hely Lopes Meirelles, como atos administrativos ordinários, na medida em que visam “[…] disciplinar o funcionamento da Administração e a conduta funcional de sus agentes. São provimentos, determinações ou esclarecimentos que se endereçam a servidores públicos a fim de orientá-los no desempenho de suas atribuições”[2].

No mesmíssimo sentido é a orientação do próprio Ibama, nos termos do “Guia para a elaboração dos Atos Administrativos do Ibama”, ao classificar os despachos decisórios como atos administrativos ordinários, por serem “[…] decisões ou encaminhamentos que autoridades executivas proferem em expedientes, requerimentos e processos submetidos à sua apreciação”, que visam dar “solução à questão” ou determinar a “adoção de providências sobre o assunto”. [3]

Ainda sobre a natureza do despacho decisório enquanto ato administrativo, segundo Di Pietro, eles poderiam, a primeiro momento, ser reconhecidos como espécies de “despachos normativos”, designação dada àqueles despachos que aprovam “parecer proferido por órgão técnico sobre assunto de interesse geral”[4], tornando-os, dessa forma, “obrigatório para toda a Administração”[5] e estendendo “a todos os que estão na mesma situação a solução adotada para determinado caso concreto, diante do Direito Positivo”[6], sem, no entanto, permitir a criação de um direito novo.

Há, como se nota, uma indicação não somente da literatura especializada, como da própria Autarquia Federal, de que essa espécie de ato é ordinária e, portanto, não tem efeitos normativos e, ainda menos, alcançaria setores/órgãos externos àqueles de onde foi lavrado o ato.

A sua incidência, portanto, recai sobre a repartição pública a qual se destina – por ser decisão emanada por autoridade competente no âmbito dos processos sujeitos à sua apreciação -, e ainda que apresentem forma e conteúdo jurisdicionais, ele não pode ser confundido com uma decisão judicial, por não estar circunscrito à esfera do Poder Judiciário, mas sim do Executivo.[7] Muito menos se confunde com atos do Poder Legislativo e não tem o condão de ampliar ou restringir direitos que já não tenham sido estabelecidos em lei, na medida em que, como espécies de “atos administrativos”, os despachos decisórios são providências jurídicas meramente complementares ao referido diploma e, portanto, possuem caráter infralegal[8], segundo os ensinamentos de Celso Antônio Bandeira de Mello.

Complementarmente, ainda em foco a natureza do ato debatido, com amparo no recém-publicado Decreto Federal nº 12.002/2024, que estabelece normas para elaboração, redação, alteração e consolidação de atos normativos, tem-se que é vedado o uso do despacho de autoridade como meio de aprovação de ato normativo apartado”[9], nos termos do seu art. 10. Em alguma medida, e em contraposição à orientação normativa, parecer ter sido esse o expediente adotado pelo Ibama, ao conferir uma interpretação – equivocada, em nossa avaliação – ao tema da “anuência” prevista na Lei da Mata Atlântica.

Desse modo, não caberia, com fulcro na norma acima mencionada e na literatura especializada, admitir o despacho decisório como ato normativo e, dessa forma, condutor de uma orientação com força vinculante ou cogente. Nem o próprio Ibama, por meio do art. 2º da Instrução Normativa nº 12/2004, o reconhece como “ato administrativo normativo”, e ainda que o fosse, é certo que, nos termos do art. 6º, caso contivesse restrições a direitos ou imposições de deveres ao cidadãos (como é o caso do Despacho Decisório nº 53/2024/GABIN, na medida em que impõe aos empreendimentos minerários que pretendam suprimir a vegetação no bioma Mata Atlântica a necessidade de anuência prévia do supramencionado Instituto), ele deveria expressamente mencionar que o ato seria praticado em estrito cumprimento à lei, citando-se os dispositivos de maneira detalhada – o que não ocorreu no presente caso, na medida em que não existe dispositivo qualquer na Lei Federal nº 11.428/2006 que explicitamente estabeleça tal obrigação aos administrados.

Por derradeiro, a partir dessa avaliação que parte da natureza jurídica do ato, depreende-se que a tentativa de criação de um direito novo por meio de um despacho decisório é juridicamente descabida. Porém, mais desarrazoado ainda nos parece um possível entendimento quanto à obrigatoriedade de adesão dos demais órgãos de meio ambiente que compõem o Sisnama, de forma vinculante, às determinações do Presidente do Ibama feitas mediante tal instrumento, especialmente aqueles com atribuições para o licenciamento ambiental, em razão do debate ora proposto.

Primeiro, pelas razões já explicitadas, relativas à própria natureza jurídica desse ato administrativo, que não permite a concretização da pretensão ora analisada, qual seja, a atribuição de efeitos normativos.

Segundo, pelo fato de que um entendimento diverso iria de encontro ao racional já cristalizado pelo art. 13, § 1º, da Lei Complementar nº 140/2011 de que, muito embora existam prerrogativas de cooperação entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios em relação à proteção do meio ambiente, o licenciamento ambiental é realizado por um único ente federativo, cabendo aos demais tão somente a manifestação não vinculante, respeitados os prazos e os procedimentos desse processo.

Terceiro – e longe de ser o argumento menos relevante – admitir que o despacho decisório vinculasse os órgãos estaduais de meio ambiente significaria admitir, por vias transversas, mal ferimento da autonomia dos entes federativos, preconizada no art. 18 da Constituição de 1988. Importante que se reforce, como feito noutra oportunidade, que o dever de proteção ambiental que se confere ao Poder Público nos art. 23 e 225 da Carta não autoriza uma interpretação que suprima a referida autonomia.

Logo, o Ibama não poderia, mediante despacho decisório, ter a pretensão de vincular os órgãos estaduais com atribuição para o licenciamento ao seu entendimento e obstar, por exemplo, o licenciamento ambiental de um empreendimento minerário cuja competência pela análise seja da Fundação de Meio Ambiente do Estado de Minas Gerais (Feam), ao exigir a apresentação de uma anuência prévia relacionada à supressão de vegetação nativa inserida no bioma Mata Atlântica.

Os entes estaduais e, reflexamente, os órgãos estaduais de meio ambiente, no contexto da Federação brasileira, são autônomos e não estão vinculados à interpretação do IBAMA sobre a Lei da Mata Atlântica.

Tamanha são as controvérsias do tema em discussão que o Sindicato das Indústrias Extrativistas de Ouro, Metais Preciosos, Diamante e Pedras Preciosas, Areais, Pedras Ornamentais, Lenha, Madeiras, Minerais Metálicos e Não Metálicos no Estado de Minas Gerais (SINDIEXTRA) impetrou Mandado de Segurança em face do IBAMA (Processo nº 6000627-65.2025.4.06.3800), no qual, além de discutir a legalidade da exigência acima referenciada e se posicionar contrariamente à ofensa aos princípios da legalidade, à repartição de competências dos entes federados estabelecida pela Lei Complementar nº 140/2011 e à instituição de novos procedimentos não previstos na legislação vigente para as atividades minerárias no bioma da Mata Atlântica, também requereu liminarmente que o ato coator – no caso, o Despacho Decisório nº 53/2024/GABIN – não produza efeitos práticos, de modo a suspender qualquer ato de envio do procedimento de licenciamento ao IBAMA, para emissão de anuência prévia.

Por todo o exposto, conclui-se que o despacho decisório é ato administrativo que não possui força normativa e que não pode também representar inovação na via legislativa, apto a criar obrigações contrárias às já estabelecidas pelo ordenamento pátrio, haja vista os limites determinados por sua própria natureza.

Não só isso, como também seria desarrazoado admitir a sua influência sobre os processos de licenciamento ambiental de empreendimentos minerários que dependam da supressão de Mata Atlântica, cuja competência pela decisão seja de outros entes federados, sob o risco de nítida ofensa aos preceitos já cristalizados na Constituição Federal e concretizados no art. 13, § 1º, da Lei Complementar nº 140/2011.

Assim, torna-se imperioso o acompanhamento da discussão ora em análise nas esferas estaduais e municipais e a verificação do tratamento que será dado em âmbito judicial ao Despacho Decisório nº 53/2024/GABIN, dada a sua relevância e poder de influenciar (ainda que negativamente) os processos de licenciamento ambiental das atividades do setor minerário.


[1] Remetemos o leitor ao artigo em que avaliamos aspectos do despacho decisório, disponível em: https://williamfreire.com.br/areas-do-direito/direito-ambiental/mata-atlantica-regime-juridico-e-anuencia-dos-orgaos-federais-de-meio-ambiente/

[2] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 23. ed. Atualizado por Eurico de Andrade Azevedo, Délcio Balestero Aleixo e José Emmanuel Burle Filho. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 163.

[3] INSTITUTO BRASILEIRO DO MEIO AMBIENTE E DOS RECURSOS NATURAIS RENOVÁVEIS. Guia para a elaboração dos atos administrativos do Ibama. Brasília: Ibama, 2012, p. 150.

[4] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 36. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023, p. 538.

[5] Ibidem.

[6] Ibidem.

[7] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 23. ed. Atualizado por Eurico de Andrade Azevedo, Délcio Balestero Aleixo e José Emmanuel Burle Filho. São Paulo: Malheiros, 1998.

[8] MELLO, Celso Antônio Bandeira De. Curso de Direito Administrativo. 32. ed. São Paulo: Malheiros Editores Ltda., 2015.

[9] BRASIL. Decreto nº 12.002, de 22 de abril de 2024. Estabelece normas para elaboração, redação, alteração e consolidação de atos normativos. Art. 10. Diário Oficial da União: seção 1, 23 abr. 2024. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2024/decreto/d12002.htm. Acesso em: 16 jan. 2025.

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